terça-feira, 31 de agosto de 2010

Prezados colegas, o professor Fabiano Pries Devide lançou este excelente exercício: relacionar os conceitos-chave da etnometodologia com a identificação do problema e com a aplicabilidade metodológica no projeto de pesquisa.

Ines encaminhou este ótimo texto. Não deixem de ler. Encaminhem os seus também. Carlos Alberto Figueiredo da Silva.

Por INES PETEREIT

1. Prática, realização: .“a realidade social é construída na prática do dia a dia pelos autores sociais em interação; não é um dado preexistente.”

Como pesquisadora, posso definir previamente as experiências que serão vivenciadas pelo grupo eleito. No entanto, a elaboração, ainda que minuciosa, será apenas uma “moldura vazada”, a ser preenchida unicamente pela vida em trânsito.
. “as mudanças macro se dão a partir das operações micro”

Posso relacionar o macro à superestrutura criada como elaboração teórica no ato da pesquisa. Nessa relação, as operações micro são os múltiplos agenciamentos que os autores-sociais fazem entre si, na intrincada trama do dia a dia. A ordem macro tende a ser rígida pois, para se manter, precisa negar a transitoriedade. A vida, porém, se afirma através da multiplicidade e da transformação. Assim, há uma tensão constante entre as ordens macro e micro, entre a rigidez de uma forma estabelecida e a inconstância da vida em devir. Sinto que essa polaridade está expressa na elaboração teórica quando submetida à prática. Nessa compreensão, é importante que o pesquisador confira mais permeabilidade às suas concepções teóricas, apreendendo aquilo que a experiência viva está lhe comunicando.


2. Indicialidade: . “(...) a indicialidade é assim essa incompletude que toda palavra possui. Ela precisa estar situada num contexto específico para revestir-se de significado”

Identifico uma qualidade de indicialidade no grupo em questão, a terceira idade, ligada a ordem do tempo.
Freqüentemente nossas senhoras do projeto Renascer partilhavam memórias de um tempo que nós, a equipe, não havíamos vivenciado. Eram nomes e expressões que despertavam profunda memória afetiva conforme pudemos testemunhar.
Para amainar o hiato entre nossas gerações decidimos nos dedicar à recuperação dessa indicialidade, atualizando-a através da experiência teatral. Assim o grupo materializou suas memórias, suas indicialidades em um ato cênico homenageando as cantoras do rádio.
A partir de então pudemos partilhar algumas expressões que passaram a constituir uma outra ordem de indicialidade. Um exemplo: Quando desejávamos que a atriz se apropriasse do espaço cênico podíamos nos expressar evocando a presença cênica da diva Marlene. Assim a indicialidade do passado se tornou uma referência para as experiências atuais.
Cumpre cuidar que a recuperação dessa indicialidade seja um exercício de projeção para o futuro. Caso contrário estaríamos estimulando a recusa do tempo: “ (...) é o futuro que decide se o passado está vivo ou não.” (Sartre, O Ser e o Nada) e ainda “ (...) um homem que tem como projeto progredir, decola de seu passado; define seu antigo eu como o eu que não existe mais, e se desinteressa dele. Ao contrário, o projeto de alguns para si implica a recusa do tempo e uma estreita solidariedade com o passado” (Beauvoir, Simone. A Velhice)

3. Reflexividade: Capacidade que os autores sociais tem de refletir o mundo que os cerca, ainda que a reflexão não lhes seja inerente. Antecipação da reflexão sobre o contexto de maneira dialógica, no aqui e agora.

4. Relatabilidade: “ É a materialização da capacidade que o indivíduo tem para descrever e construir a realidade”

Sempre dedicávamos parte de nosso tempo de trabalho às conversas surgidas espontaneamente. Compartilhando seu dia a dia, seus etnométodos eram redimensionados quando tomados como fonte de inspiração na criação cênica. Considero que nesse processo o grupo adquiriu mais consciência de sua capacidade co-criadora da realidade – à inerente reflexividade somou-se a reflexão.
O ritmo acelerado que a cultura capitalista impõe acentua o descompasso dos idosos, cujas falas, muitas vezes, são préviamente estigmatizadas pela sociedade. Acredito que a consciência da reflexividade aumente o empoderamento dos anciãos. Em uma via de mão dupla, eles reconhecem a capacidade de afetarem o todo e não apenas de serem por ele afetados.
Acredito que seja particularmente importante, à respeito desses tópicos, o exercício de recuperação da identidade, tão negado pela cultura de massa. A reflexividade de cada um é única na medida em que é criada a partir faz fontes íntimas de significação, pelas quais damos sentido ao mundo.
Valorizar os matizes das reflexividades plurais através da expressão cênica partindo do reconhecimento do sujeito enquanto um autor social é uma das observâncias de meu estudo. A

5. Noção de membro: “membro é a pessoa dotada de um conjunto de procedimentos, métodos, atividades, savoir-faire, que a tornam capaz de inventar dispositivos de adaptação para dar sentido ao mundo que a rodeia”

Ao trabalhar com a 3ª idade considero relevante apreender os dispositivos de adaptação que cada um como membro dessa categoria já desenvolveu. Por outro lado é comum encontrar situações nas quais o idoso negue sua temporalidade : (...) a maioria dos velhos encontra-se nesse caso; eles recusam o tempo porque não querem decair; definem seu antigo eu como aquele que continuam a ser: afirmam a sua solidariedade com a sua juventude.” (Beauvoir, Simone. A Velhice).
A aceitação de sua condição existencial é um desafio para o idoso em uma sociedade onde a morte permanece como um tabu. Ao não se apossar de seu tempo, o idoso é freqüentemente manejado por outras mãos que por ele se responsabilizam. Superar em si os preconceitos quanto à velhice, assumindo o corpo presente é, ao meu ver, um fator fundamental para que a autonomia da condição de membro possa ser exercida.
Muitas vezes, nas dinâmicas teatrais, as senhoras se comparavam à equipe, jovem e cheia de vigor. A partir dessa observação, passamos a não mais demonstrar os exercícios propostos, a fim de que elas não fixassem um padrão associado à juventude. Assim, elas eram desafiadas a assumirem seus próprios corpos, sem modelos prévios, encontrando as adaptações necessárias no calor de cada momento.

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